sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Escorpião e a Rã



De todos os bichos da floresta o escorpião era o mais temido. 
Até mesmo o leão e o elefante davam um passo para o lado para deixá-lo passar.

O tigre, coitado, certa vez, distraído, deitou-se sobre o ninho do escorpião, e por muitos dias a floresta inteira não pôde dormir por causa de seus urros de dor.
O escorpião gostava disto. Dava risadas quando pensava em sua fama de bicho mau. O seu rabo era ereto, pontudo, venenoso, doloroso... E a forma como os bichos o olhavam lhe dizia o quanto ele era temido e respeitado. A alma do escorpião morava no seu rabo, que tanto mais subia quanto mais pavor pudesse provocar nos outros.

Havia só uma coisa que o assustava. É que, vez por outra, lhe apareciam uns sentimentos estranhos, impróprios de um escorpião: uma vontade de gostar, uma vontade de ser gostado. Mas essa era uma tentação da qual se livrava com facilidade. Bastava picar um ou dois bichos que encontrasse no caminho. Ele era o oposto da madrasta da Branca de Neve. Não queria ser o mais bonito. Isto era coisa para o pavão ou a arara.

Queria era ser aquele que causava mais terror. Pois é: o escorpião pensava que quem ama e é amado fica manso e abaixa o rabo. E para o escorpião o pior que lhe poderia acontecer era que o seu rabo abaixasse. Se isso um dia lhe acontecesse, ele se mataria pra fugir da vergonha. (Muita gente é assim. Um medo de ternura e de abaixar o rabo... Até mesmo países inteiros gastam o maior dinheiro para multiplicar seus rabos de escorpião...)

Pois o escorpião tanto terror tinha de afeto que uma coisa sempre se repetia. Depois que o casal de escorpiões apaixonados se abraçava e se amava vinha logo a raiva de ter amado e de ter gostado. E, enfurecido, o mais rápido se lançava sobre o outro, distraído, com boca, tenazes e ferrão. E zás! Era uma vez um escorpião, transformado em refeição...
Os bichos fugiam apavorados, jurando que nunca se aproximariam de animal tão malvado. O que só fazia aumentar o orgulho do escorpião.
E o escorpião, de barriga cheia, repetia, orgulhoso, o moto que o inspirava:

“Fale suavemente,
tenha sempre pronto o ferrão:
você irá longe...”

Aconteceu, entretanto, que um dia a floresta pegou fogo. E incêndio não tem medo de rabo de escorpião. Só havia um jeito de fugir da morte: era atravessando o rio, para o outro lado. Os bichos que sabiam nadar pulavam, na água, levando seus amigos nas costas. Mas o escorpião nem tinha amigos e nem sabia nadar. E não havia ninguém que se arriscasse a oferecer-lhe carona.
O escorpião então, valentia e coragem sumidas ante o fogo que se aproximava, foi forçado a se humilhar. Dirigiu-se com voz mansa à rã, que se preparava para a travessia.

- Por favor, me leve nas suas costas, ele disse.
- Eu não sou louca. Sei muito bem o que você faz a todos os que se aproximam de você, replicou a rã.
- Mas veja, argumentou o escorpião, - eu não posso picá-la com meu ferrão. Se o fizesse você morreria, afundaria, e eu junto, pois não sei nadar.

A rã ponderou que o raciocínio estava certo. 
Podia ser que o escorpião fosse muito feroz, mas não podia ser burro. 
Todo mundo ama a vida. O escorpião não podia ser diferente. Ele não iria matar, sabendo que assim se mataria...
E como tinha bom coração resolveu fazer esta boa ação.

- Muito bem, disse a rã ao escorpião. – Suba nas minhas costas. Vou salvar sua vida...
O escorpião se encheu de alegria, subiu nas costas lisas da rã, e começaram a travessia.
- Que coisa, ele pensou, - é a primeira vez que me encosto em alguém de corpo inteiro. Antes era só o ferrão... E até que não é ruim. O corpo da rã é bem maciinho...
Enquanto isso a rã ia dando suas braçadas tranqüilas, nado de peito, deslizando sobre a superfície.
- E como é gostoso navegar, continuou o escorpião nos seus pensamentos. – Estes borrifos de água, como são gostosos.
É bom ter a rã como amiga...

Estavam bem no meio do rio. O escorpião olhou para trás e viu a floresta em chamas.
- Se não fosse a rã, eu estaria morto neste momento. E um estranho sentimento, desconhecido, encheu seu coração: gratidão. Nem sempre veneno e ferrão são a melhor solução. A vida estava com a rã, macia e inofensiva, que não inspirava medo a ninguém...
Sentiu seu corpo descontrair-se. Achou que a vida era boa... Era bom poder baixar a guarda e descansar.

Voltou-se de novo para trás para olhar a floresta incendiada.
Mas, ao fazer isto, viu-se refletido, corpo inteiro, na água do rio que brilhava à luz do fogo. E o que viu o horrorizou: seu rabo, dantes ereto, agora dobrado, desarmado. Escorpião de rabo mole... Todos ririam dele. E sentiu um ódio profundo da rã.
- Espelho, espelho meu, existe bicho mais terrível do que eu?
A resposta estava naquele rabo mole, refletido no espelho da água. E a única culpada era a rã...
Sem um outro pensamento enrijeceu o rabo e o enfiou nas costas da rã.

A rã morreu.
E com ela o escorpião.

A estupidez do poder é maior que o amor à vida.

Rubem Alves

Um comentário:

  1. Conheci esta fábula numa das muitas conversas que tive com uma amiga muito especial, "Zirlene". Após me contar em resumo, ela fez um comentário muito interessante:
    "Cada um tem uma natureza".
    Nunca me esqueci disso e depois de muito tempo comprei o livrinho do Rubem Alves só para me deliciar com este intrigante texto.
    Obrigada Zi!

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